As touradas têm tradições que se confundem com as raízes da Espanha
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O escritor americano Ernest Hemingway dedicou a elas vários de seus livros. Os pintores espanhóis Pablo Picasso e Francisco de Goya pintaram uma série de quadros sobre o tema. O compositor francês Georges Bizet compôs sua famosa ópera 'Carmen' inspirado no assunto.
Não é à toa que o Dicionário da Real Academia Espanhola defina as touradas como uma arte. Apesar dos protestos dos grupos que defendem os animais, as touradas sobrevivem como uma das mais controversas manifestações populares do mundo.
Presentes em países como Portugal, França, México, Colômbia, Venezuela, Equador e Peru, na Espanha elas ganharam um destaque incomparável. Lá, estima se que cerca de 6 mil touros sejam mortos em cada temporada, que dura de março a outubro. Os espetáculos empregam cerca de 200 mil pessoas, ou 1% de toda a mão de obra do país. O toureiro Julián López, “El Juli”, não entra na arena por menos de 150 mil euros – mais de 700 mil reais.
Segundo José Ortega y Gasset, um dos principais filósofos espanhóis, morto em 1955, não dá para entender a história da Espanha sem as corridas de touros. “Essa festa tem feito os espanhóis felizes há muito tempo, embebido suas conversas e sua vida”, escreveu ele no livro ‘LaCaza y los Toros’. Reconhecendo essa importância, instituições protegem as touradas como parte da “cultura nacional” espanhola.
Origem da tradição
Mas, afinal, de onde veio essa tradição? Durante séculos, todos pareciam ter certeza quanto às origens das touradas, que teriam sido levadas à Espanha pelos muçulmanos no século 8. Mas pesquisas com textos medievais com provaram que os próprios árabes só tiveram contato com os jogos taurinos ao chegarem à Península Ibérica.
Apesar de esses estudos terem desmentido a origem árabe da festa, a associação entre as touradas e a cultura moura está presente até hoje na decoração das arenas”, disse o escritor espanhol Antonio Santainés.
Hoje pesquisadores acreditam que as touradas espanholas receberam influências de diversas tradições e culturas. Sabe se, por exemplo, que jogos envolvendo touros existem desde o século 16 a.C. — como revela a cena de um afresco encontrado na Ilha de Creta, que mostra jovens agarrando os chifres desses animais. Na região da Espanha, os primeiros a lutar com touros teriam sido povos da época do Império Romano.
Por volta do século 3 a.C., os celtiberos do norte da Península Ibérica já sabiam que os touros que habitavam as florestas locais eram muito agressivos. Eles enfrentavam os animais, mas também utilizavam nos na guerra, soltando os enfureci dos em direção aos exércitos inimigos. Ao sul de onde viviam os celtiberos, a caça de touros acabou se transformando num verdadeiro jogo.
Relatos romanos do fim da era pré- cristã descrevem rituais em que guerreiros enfrentavam touros selvagens na cidade ibérica de Baética. A forma como isso ocorria tem acara das touradas modernas: os toureiros primitivos da região se esquivavam do bicho usando uma pele para distraí-lo e, ao final, o matavam com uma lança ou machado.
No século 5, após o fim do Império Roma no do Ocidente, os visigodos ocuparam a Península Ibérica. E, no que diz respeito aos jogos com touros, fizeram jus ao apelido de “bárbaros”. Em vez de se contentar em golpear o bicho com objetos cortantes, eles se jogavam sobre o touro, que normalmente já estava ferido, para imobilizá-lo e sufocá-lo com as próprias mãos.
Chega a cavalaria
Com a invasão dos muçulmanos, vindos da região africana do Magreb em 711, os costumes da Península Ibérica sofreram uma reviravolta– que incluiu uma inovação no mundo das touradas. Conhecidos por sua habilidade na arte de montar, os magrebinos deram aos cavaleiros o papel central nos jogos com touros. Eles matavam o animal com lanças, apoiados por auxiliares que, a pé, cercavam os animais.
No fim do século 11, grandes festivais com touros já haviam se tornado comuns no sul da Península Ibérica, dominado pelos árabes. Anfiteatros de cidades como Sevilha eram palco de concursos em que cavaleiros armados com lanças competiam entre si para ver quem matava touros com mais eficiência. Nas cidades em que não havia locais mais apropriados, esses festivais aconteciam em grandes praças públicas – é daí, aliás, que vem a expressão “praça de touros”, usada até hoje para se referir às arenas.
Durante os séculos 12 e 13, os cristãos da Península Ibérica se empenharam em expulsar os muçulmanos. Por volta de 1250, boa parte do território já tinha sido reconquistado. Mas, entre os muitos traços culturais deixados pelos árabes, ficou o gosto pelas touradas a cavalo. Na época em que os reinos cristãos da Península Ibérica se uniram para formar a Espanha, em1469, as touradas públicas já tinham consolidado seu posto como esporte favorito da nobreza.
Em ocasiões como casamentos e nascimentos, as corridas de touros tinham lugar de destaque nas comemorações. Um exemplo disso está no que fez o rei espanhol Carlos I (que também comandou o Sacro Império Romano sob o nome de Carlos V): Em 1527, ele enfrentou um touro para celebrar o nascimento de um filho, o futuro rei Felipe II. No século 17, os nobres que se destacavam nas touradas eram convidados a se exibir fora de seus domínios. Mas, muitas vezes, quem roubava a cena com coragem e destreza eram seus auxiliares.
Plebeus, lutavam a pé, usavam capas para enganar os animais e passaram a participar mais da morte do touro. Quando os nobres da casa Bourbon, de origem francesa, subiram ao poder na Espanha, em 1700, a participação em touradas começou a ser vista como algo impróprio para aristocratas. Enquanto a corte se deleitava com hábitos afrancesados, homens comuns viraram protagonistas das corridas de touros.
Os mestres ficam em pé
Ainda no século 18, as touradas começaram a ganhar as feições que têm até hoje. A cavalo, os coadjuvantes picadores enfraqueciam o touro com suas lanças, antes da participação decisiva dos matadores, a pé com suas capas e espadas. Eram homens simples, que se enobreciam na arena.
Joaquín Rodríguez, o Costillares, nascido em 1729, trabalhava num matadouro e foi pioneiro no modo de manusear a capa – e nas roupas bordadas e enfeitadas. Já o carpinteiro Pedro Romero, principal rival de Costillares, popularizou o estoque, o tipo de espada usado hoje para matar o touro.
Naquela época nasceu também o hábito de tourear por dinheiro. O florescimento das touradas foi interrompido no início do século 19. Em 1805, Carlos IV resolveu proibir todos os eventos e celebrações com touros. A proibição durou até 1808, mas coincidiu com a invasão da Espanha pelas tropas francesas de Napoleão Bonaparte. Os espanhóis só conseguiram voltar a ser independentes em 1814, mas as touradas demoraram a se reerguer (uma das razões foi a falta de cuidado, durante a guerra, com a criação e o treinamento dos touros).
Elas voltaram com força total no início do século 20 e as disputas entre os matadores José Gomez Ortega e Juan Belmonte, a partir de 1912, marcaram a chamada “Idade de Ouro” das touradas. O período acabou em 1920, com a morte de Ortega, ferido por um touro na arena. Os anos seguintes costumam ser chamados de “Idade de Prata”, interrompida pela Guerra Civil Espanhola, travada entre 1936 e 1939.
Com o fim do conflito, surgiu aquele que, para muitos, foi o maior toureiro de todos os tempos: Manuel Laureano Rodríguez Sánchez, o Manolete. Hábil e destemido, acabou morto por um touro em 1947. Sua vida chegou aos cinemas há dez anos, com o filme ‘Manolete–Sangue e Paixão’, de Menno Meyjes. Estrelado por Adrien Brody, a produção anglo hispânica é garantia de polêmica entre os amantes e os críticos das touradas – que ainda devem continuar brigando durante muito tempo, assim como os homens e os touros.