Calçada do Lorena: A história por trás da estrada da independência
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Era a melhor estrada do Brasil àquela época, e como ela, poucas eram vistas na Europa, segundo depoimento de viajantes. Pela Calçada do Lorena subiu o príncipe regente na memorável viagem de 7 de setembro de 1822. A Calçada do Lorena é a Estrada da Independência.
+ 7 de setembro: A História por trás da Independência do Brasil
Já o imperador D. Pedro II subiu posteriormente pela outra estrada, a qual por ter sido aberta à época de sua elevação ao trono recebeu o nome de Estrada da Maioridade, cujo traçado foi adaptado ao tráfego de automóveis no governo de Washington Luís, recebendo o nome atual de Caminho do Mar.
Subsiste, ainda, em meio à densa vegetação da Serra do Mar, a Calçada construída em 1790, com curioso traçado em ziguezague e pavimentação de pedra. Situada entre o Rio das Pedras e o Rio Cubatão, trecho mais árduo da ligação de São Paulo com o Porto do Cubatão, essa estrada destinava-se a dar escoamento aos produtos das terras de “serra acima”, principalmente o açúcar.
A construção
A iniciativa da sua construção coube a Bernardo José Maria de Lorena, governador da Capitania de São Paulo (1788 a 1798), tendo sua execução ficado a cargo do brigadeiro João da Costa Ferreira, do Real Corpo de Engenheiros, que fez um “doce caminho”, como foi escrito em um registro da Câmara, “pela intransitável e bravia serra do Cubatão”, onde antes havia um caminho “que fazia horror aos passageiros pela aspereza e extensão”.
Para execução de sua extensa obra, o brigadeiro João da Costa Ferreira contou com um auxiliar igualmente dotado de grande iniciativa, o ajudante de engenheiros Antônio Rodrigues Montezinho.
A obra ficou conhecida por Calçada do Lorena. Esse empreendimento assinalou o início da construção de uma infraestrutura destinada a colocar São Paulo no comércio internacional.
O beneditino frei Gaspar da Madre de Deus comenta em carta ao governador Lorena: “Uma ladeira espaçosa [a Calçada do Lorena] calçada de pedras, por onde se sobe com pouca fadiga e se desce com segurança. Evitou-se a aspereza do caminho com engenhosos rodeios, e com muros fabricados junto aos despenhadeiros se desvaneceu a contingência de alguns precipícios. Por meio de canais se preveniu o estrago que costumavam fazer as enxurradas, e foram abatidas as árvores que impediam o ingresso do Sol, para se conservar a estrada sempre enxuta, na qual em consequência desses benefícios já se não veem atoleiros, não há lama e se acabaram aqueles degraus terríveis”.
A mencionada calçada rompeu o isolamento em que se encontravam os paulistas por causa das péssimas ligações com o litoral. E o que mais surpreendeu a população foi a técnica empregada na pavimentação: o calçamento com lajes de pedra.
A nova técnica, desconhecida nas estradas da capitania, assegurou o trânsito permanente de tropas de muares que, por essa época, principiavam a ser largamente empregadas no transporte de carga. Anteriormente, a precariedade das trilhas e a rede carregada por indígenas eram um pesadelo aos viajantes, única alternativa para quem não se dispusesse a subir a serra a pé. Toda a carga era, igualmente, transportada nos ombros dos indígenas.
O mesmo frei Gaspar esclarece com profusão de pormenores ao descrever a estrada anterior de Lorena: “Um caminho, ou para melhor dizer, uma caverna tortuosa, profunda, e tão apertada, que nos barrancos colaterais se viam sempre reguinhos abertos pelos cavaleiros, os quais não podiam transitar, sem irem tocando com os estribos naqueles formidáveis paredões; caverna na qual permaneciam em todo o tempo degraus de terra escorregadiça, e alguns tão altos que às bestas era necessário vencê-los de salto, quando subiam e arrastando-se quando desciam; uma viela lodosa, quase toda cheia de atoleiros, que sucediam uns aos outros com breves interpolações de terrenos povoados de pedrinhas facilmente deslocáveis, que mortificavam aos viajantes de pé, e constituíam aos animais um perigo evidente de escorregarem, e caindo arrojarem os cavaleiros, e cargas, como sucedia muitas vezes: uma passagem rodeada de despenhadeiros, que obrigavam os caminhantes a irem com muito tento, para se não precipitarem; enfim, um passo laboriosíssimo, uma série contínua de perigos, foi a Serra noutro tempo”.
Ligação com São Paulo
Ao assumir o governo, em 1788, Lorena compreendeu que, dadas as condições climáticas reinantes na região, os maiores problemas seriam as enxurradas, a lama e os atoleiros. O emprego da pedra, técnica capaz de enfrentar elevado índice pluviométrico da Serra de Paranapiacaba, e com a qual estavam familiarizados os engenheiros militares, alguns deles vindos das obras de reconstrução de Lisboa e cercanias, seria a melhor solução.
Esses engenheiros militares enviados originariamente para trabalhar na demarcação de fronteiras com a missão de realizar trabalhos cartográficos, visando a dar cumprimento ao Tratado de Santo Ildefonso, ficaram responsáveis por notáveis trabalhos empreendidos na Capitania, como a elaboração do primeiro plano urbanístico da cidade de São Paulo, e de seu primeiro chafariz em pedra, erigido pelo pedreiro Tebas, no Largo da Misericórdia.
Até a construção da Estrada da Maioridade, em 1841, que em 1844 passou a permitir o trânsito de carros, a Calçada do Lorena assegurou a ligação de São Paulo com Cubatão. A partir de então, e mesmo continuando a ser utilizada pelas tropas de mulas, foi conhecendo um progressivo abandono, até o golpe final, representado pela construção da estrada de ferro.
No governo de Morgado de Mateus (1765-1775), dentro de sua política de estimular o povoamento da Capitania com a criação de novos núcleos urbanos, a agricultura recebeu grande estímulo, como meio de fixação dos colonos à terra. Nesse contexto, o açúcar teve notável papel.
Pode-se afirmar que, por essa época, todos os bairros ou povoados do “quadrilátero açucareiro” tiveram, praticamente, sua origem ou desenvolvimento ligado à cana. Esse quadrilátero, formado por Sorocaba, Piracicaba, Mogi-Guaçu e Jundiaí, abrange a área entre os rios Mogi, Piracicaba e Tietê.
Na carta que endereçou ao vice-rei, em 1781, dando conta dos melhoramentos que introduzira no caminho de São Paulo a Santos, Martim Lopes Lobo de Saldanha, que governou a Capitania de 1775 a 1782, relata que recebera “donativos gratuitos” das Câmaras de São Paulo, Santos, Itu, Atibaia, Sorocaba, Parnaíba, Jundiaí, Mogi-Mirim e Mogi-Guaçu. O documento define, claramente, a região produtora. O governador que o sucedeu, Cunha Menezes (1782-1784), foi o beneficiário dessa obra na serra.
Entre a base da serra e o porto de Cubatão foi construído um aterro, obra de Gama Lobo, que governou a Capitania entre 1786 e 1788, sucedendo Cunha e Menezes. O atual Caminho do Mar aproveitou esse aterro entre o pontilhão sobre o córrego do Cafezal na raiz da serra e o Rio Cubatão, passando pelo monumento conhecido por “Cruzeiro Quinhentista”.
Uma nova fase
A Calçada do Lorena deu início a uma nova fase na história dos caminhos da Capitania de São Paulo. Na verdade, sucedeu caminhos um pouco melhores do que as primitivas trilhas indígenas. Já essa ligação, vital para a economia da Capitania, é uma estrada cuja execução foi precedida por levantamentos topográficos, hidrográficos e observações registradas, como citado, pelos oficiais do Real Corpo de Engenheiros.
Representa, por tudo isso, um verdadeiro marco, dos mais significativos, na história da evolução da tecnologia no Brasil.
A 15 de fevereiro de 1792, Lorena escrevia a Martinho de Melo e Castro dando conta da conclusão da obra, documento em que transparece seu justificado orgulho: “Está finalmente concluído o Caminho desta cidade até Cubatão da Vila de Santos, de sorte que até de noite se segue viagem por ele, a serra é toda calçada, e com largura para poderem passar tropas de bestas encontradas sem pararem; o Péssimo Caminho antigo, e os precipícios da Serra bem conhecidos eram o mais forte obstáculo contra o comércio, como agora se venceu, tudo fica mais fácil”.
Nesse ofício, Lorena fala de um obelisco colocado no Pico da Serra e diz que “acompanha este ofício o mapa topográfico de todo o caminho”, o que constitui uma informação de maior importância, uma vez que revela haver um plano para execução da estrada, o que não era usual.
A administração de Lorena, portanto, inaugurou uma nova fase na história dos caminhos. Dela derivou a comunicação entre os núcleos urbanos, não simplesmente por antigas trilhas dos naturais, como até então se fizera, mas também por estradas abertas com base em levantamentos levados a efeito por profissionais habilitados e com traçado estabelecido, considerando-se, além da topografia, a natureza do solo da região e outras peculiaridades locais, como o caso da Ponte do Cubatão, cujas bases foram executadas em pedra em função da presença de gusano na água.
Esses levantamentos eram tão cuidadosos que uma carta topográfica chegou a incluir um: “Mapa das madeiras de lei que com maior abundância se acham nos rios reservados para os cortes reais”, no qual foram ainda anotados os nomes, quantidade (frequência de ocorrência), grossura, comprimento e descrição de qualidades e préstimos, o que constituía guia seguro para os construtores, documento de grande interesse para estudo de nossa flora.
O trecho acima foi tirado do livro 'Os Caminhos do Mar, de Benedito Lima de Toledo', publicado em uma coedição pela KPMO Cultura e Arte e Cultura Acadêmica.