Nazismo e grandes empresários: o Holocausto como forma de lucro
Aventuras Na História
Às seis da manhã de uma segunda-feira, 20 de fevereiro de 1933, cerca de 12 dos empresários mais ricos e influentes da Alemanha chegaram para uma reunião na residência oficial do presidente do Reichstag, Herman Göring, apenas três semanas depois de Adolf Hitler ser nomeado chanceler.
No encontro, Adolf Hitler fez um longo discurso de cerca de 90 minutos, falando sobre seu diagnóstico para o momento político e econômico do país, reforçando que chegara o momento da luta entre a direita e a esquerda. Seu lado, porém, deveria sair vitorioso.
O Partido Nazista precisava de fundos para a campanha eleitoral que seriam realizadas em 5 de março. Caso alcançassem dois terços das cadeiras, conseguiriam a aprovação da Lei de Concessão de Plenos Poderes, que daria total autoridade para Hitler instaurar sua ditadura.
Discurso de Hitler no Reichstag promovendo a Lei de Concessão de Plenos Poderes/ Crédito: Bundesarchiv
“A empresa privada não pode ser mantida na era da democracia”, exclamou o chanceler, à época com 43 anos. “Ela só é concebível se o povo tiver uma ideia sólida de autoridade e personalidade. Tudo de positivo, bom e valioso que foi alcançado no mundo no campo da economia e da cultura é atribuível unicamente à importância da personalidade.”
Primeiro devemos ganhar o poder completo, se quisermos esmagar o outro lado”, esbravejou.
Prometendo um clima favorável e duradouro para a economia, o partido nazista conseguiu arrecadar 3 milhões de marcos (o que daria mais de 100 milhões de reais na conversão atual). Como a história conta, os nazistas lograram e os grandes empresários foram 'recompensados' por isso.
“Eu acho que o regime de Hitler não teria conseguido ter sucesso se os negócios alemães não tivessem o apoiado depois que ele tomou o poder em 1933. Ele precisava da proeza de produção da indústria alemã para ter sucesso em seus planos de rearmamento e guerra”, explica o jornalista e escritor David de Jong em entrevista exclusiva à equipe do site do Aventuras na História.
David é escritor do recém lançado 'Bilionários nazistas: A tenebrosa história das dinastias mais ricas da Alemanha' (Ed. Objetiva), em que De Jong retrata como industriais alemães aumentaram suas fortunas conspirando com Hitler.
Capa de 'Bilionários nazistas' e retato de David de Jong/ Crédito: Ed. Objetiva e Joachim Gern
"Essas empresas e famílias de negócios alemãs teriam sido bem-sucedidas, com ou sem o regime nazista. A maioria das famílias sobre as quais escrevo, com exceção do clã Porsche-Piëch, já era muito rica antes de Hitler tomar o poder em 1933. Essas famílias e empresas prosperaram em todos os sistemas políticos, ditatoriais ou democráticos", diz.
Atualmente, ele estima que das 10 pessoas mais ricas do país, metade dos indivíduos possuem empresas com histórico de ligação com o nazismo.
Exploração de Guerra
Durante os anos da Segunda Guerra Mundial, grandes nomes da indústria como Von Finck, Porsche, Oetker e Quandt ampliaram seus impérios por meio de uma série de barbáries promovidas pelos nazistas.
De Jong explica existirem várias formas de 'lucrar' como o regime nazista: com a fabricação de armas e munições; o roubo e expropriação de negócios e ativos de propriedade de judeus; além da exploração em massa de trabalhadores forçados e escravos.
Para se ter uma ideia, muitas das maiores companhias da Alemanha usavam trabalhos escravos de pessoas que estavam nos campos de concentração. Algo retratado de forma mais 'romantizada' no filme ‘A Lista de Schindler’, de Steven Spielberg.
"Suas condições de trabalho eram horríveis. Após a invasão alemã na União Soviética em 1941, começou a deportação em massa de trabalhadores forçados e escravos de toda a Europa para fábricas e minas alemãs", conta o historiador.
Estima-se que entre 12 a 20 milhões de pessoas foram deportadas para trabalhar na Alemanha nazista, sendo que aproximadamente 2,5 milhões delas morreram devido às terríveis condições de trabalho em fábricas, minas e campos de trabalho.
Portão de Auschwitz com a frase "Arbeit macht frei" ('O trabalho liberta')/ Crédito: Neil via Wikimedia Commons
"Existia três maneiras pelas quais as empresas alemãs adquiriam essa mão de obra. Havia trabalhadores forçados que eram principalmente da Europa Oriental, deportados aos milhões pela frente de trabalho alemã — e pagos muito menos do que os trabalhadores alemães — e mantidos em campos de trabalho", inicia De Jong.
Depois, havia prisioneiros de guerra. Eles não foram pagos. Em terceiro lugar, você teve trabalho em campos de concentração. Essa foi uma colaboração da SS com grandes empresas como BMW, Daimler, Volkswagen, IG Farben, Siemens, Krupp, Dr. Oetker e empresas controladas por Günther Quandt e Friedrich Flick”, explica.
Jornalista de origem neerlandesa e especializado em economia e finanças, David de Jong aponta que esses trabalhadores eram escravizados e o único objetivo de mantê-los era para exterminá-los por meio do trabalho.
"Essas companhias arrendavam prisioneiros da SS por quatro reichsmarks por dia para mão de obra não qualificada e seis reichsmarks por dia para mão de obra qualificada. A SS construiu campos de subconcentração, ou ‘campos de concentração satélite’, como eram chamados, em complexos fabris. Esses campos eram guardados pela SS e quase não havia atendimento médico e comida para os cativos", revela.
Além do mais, os prisioneiros eram executados, enforcados ou fuzilados pelas menores infrações que cometiam. Isso sem contar os constantes abusos em seus locais de trabalho. "Eles não tinham roupas de proteção, então manuseavam o maquinário com as próprias mãos. Havia as condições de trabalho mais terríveis que você pode imaginar".
Perpetuação do poder
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, sobram poucos sobreviventes judeus para reivindicar as empresas, ações, imóveis, terras, obras de arte, joias e outros bens que lhes foram roubados; ou que as famílias judias foram obrigadas a vender por um preço abaixo do valor de mercado, pois queriam fugir da Alemanha nazista às pressas.
Por outro lado, quem havia ficado com a posse desses bens, não tinha interesse nenhum em devolvê-los. "É claro que as famílias de empresários alemães que lucraram com os bens expropriados queriam ficar caladas porque queriam ficar com o que seus pais roubaram ou compraram barato", aponta De Jong.
O jornalista ainda conta que, depois do fim do conflito, esses empresários jamais foram julgados ou condenados da maneira que deveriam. Muito pelo contrário. Eles perpetuaram verdadeiros impérios. Mas o que fez com que suas contribuições com o nazismo fossem ‘esquecidas’?
Os americanos limitaram o número de julgamentos contra industriais em Nuremberg porque não queriam levar o capitalismo a julgamento”, enfatiza David.
Fazendo um contexto da época, o pesquisador ressalta que o período da Guerra Fria estava começando, portanto, os americanos tomaram essa decisão política de reconstruir a Alemanha Ocidental como um estado democraticamente viável e economicamente forte, que funcionaria como um amortecedor contra a União Soviética e a invasão do comunismo.
Alemães no banco dos réus no Julgamento de Nuremberg/ Crédito: National Archives and Records Administration
"Eu entendo essa decisão política, mas onde deu completamente errado, na minha opinião, foi quando os americanos, britânicos e franceses devolveram centenas de milhares de suspeitos de crimes de guerra nazistas às autoridades da Alemanha Ocidental para os chamados processos de desnazificação, que foram julgamentos legais muito falhos que ocorreram no oeste da Alemanha entre 1945 e 1950", aponta.
Isso, basicamente, significava que centenas de milhares, senão milhões, de alemães foram libertados por seus crimes, porque não havia interesse do lado alemão em julgar pessoas por crimes que eles mesmos haviam cometido e simpatias que eles também tinham”, explica De Jong.
Embora a sociedade alemã sempre tenha se mostrado muito solidária com o seu passado, lutando contra o 'apagamento histórico', David não enxerga o setor privado com esse mesmo tipo de engajamento. "É porque os negócios alemães nunca foram forçados a assumir qualquer tipo de responsabilidade moral por seus crimes durante o Terceiro Reich", reitera.
Embora reconheça que houve compensações financeiras por parte de algumas empresas, elas sempre negociaram que não teriam que admitir qualquer culpabilidade ou a culpa em si pelos crimes que cometeram.
"Eles pagaram, mas pagar é algo diferente de realmente assumir a responsabilidade pelas ações do passado. A falta de responsabilidade tem permitido a essas famílias de empresários varrer a história para debaixo do tapete até hoje", salienta.
Por outro lado, o autor de 'Bilionários nazistas: A tenebrosa história das dinastias mais ricas da Alemanha' acredita que o reconhecimento dessas chagas do passado ainda pode acontecer, mas aponta os fatores que precisam ocorrer para chegar a isso: "Definitivamente, acho que isso pode acontecer, mas essas empresas e famílias alemãs precisam ser pressionadas".
"A mudança não acontece da noite para o dia. Essas empresas e dinastias precisam perceber que precisam ser transparentes sobre o bem e o mal da história. Não apenas celebre seus patriarcas por seus sucessos comerciais, mas também seja honesto sobre seus crimes de guerra e afiliações nazistas", pontua.
Formas de poder
Não faltam exemplos em nossa história de governos ditatoriais que chegaram ao poder prometendo lutar pelo povo. De início, líderes apresentam uma retórica populista e até mesmo patriótica.
Mas pouco a pouco tendem a defender apenas os interesses de grandes empresários. Será que é possível existir uma ditadura sem o apoio dos donos de grandes riquezas?
“Não, eu não penso assim. Um regime ditatorial precisa do apoio dos negócios, das finanças e da indústria para manter a economia funcionando tanto quanto um governo democraticamente eleito”, salienta David.
Levando essa necessidade empresarial para a perpetuação do poder para um contexto mais próximo de nossa história, podemos traçar um paralelo entre o apoio dado pela Volkswagen ao nazismo como a forma que a montadora se comportou perante a ditadura militar no Brasil após o Golpe de 1964.
Conforme recorda matéria do Deutsche Welle publicado em 2021, um relatório produzido em conjunto pelo Ministério Público Federal em São Paulo (MPF-SP), Ministério Público do Estado de São Paulo (MP-SP) e o Ministério Público do Trabalho (MPT), concluiu que a montadora alemã teve intensa colaboração com o regime da época.
Um ponto relevante apontado pelos órgãos, aliás, foi uma carta do presidente a subsidiária brasileira de 1964, na qual o ex-filiado ao partido nazista Friedrich Schultz-Wenk elogia “a organização da revolta, que havia sido extremamente bem-preparada”.
Durante os anos que se seguiram após a tomada de poder pelos militares, a filiada brasileira da montadora alemã seguia à risca a ideologia do regime ditatorial, usando, para interesses comerciais, o “maquinário repressivo do Estado” para impedir greves.
O documento também apontou que a Volks tinha vontade de participar do sistema repressivo, mesmo “sabendo que submetia seus funcionários a risco de prisões ilegais e tortura”.
"Lamentamos as violações que ocorreram no passado. Estamos cientes de que é responsabilidade conjunta de todos os atores biológicos e da sociedade os direitos humanos e promover sua observância. Para a Volkswagen AG, é importante lidar com a responsabilidade com esse capítulo negativo da história do Brasil e promover a transparência", disse em nota Hiltrud Werner, membro do Conselho de Administração da Volkswagen AG.
Sobre o assunto, David de Jong finaliza dando seu parecer: “Existem tantos exemplos de empresas que apoiam a ditadura em todo o mundo. Essa é uma das questões que definem o capitalismo. É amoral em sua essência”.
Muitas vezes, uma empresa não se importa com a forma como lucra, ou por que meios, desde que continue lucrativa”, encerra.