Recrutado pelos EUA na Segunda Guerra, oncologista brasileiro fez história no combate ao câncer de mama
Aventuras Na História
Durante a Segunda Guerra Mundial, enquanto os americanos estavam em batalha na Europa, lutando contra as tropas de Hitler e dos países do Eixo, médicos de diversas partes do planeta eram levados para os Estados Unidos do então presidente Franklin Roosevelt para suprir a falta dos residentes que apoiavam os militares nos campos de batalha.
Entre esses médicos estrangeiros, um brasileiro foi recrutado, Fernando Campello Gentil (1920 -1980). Em 1942, Gentil foi para Nova York para trabalhar no Memorial Sloan-Kettering Cancer Center, e chegou a ser assistente do doutor George T. Pack, na época uma das maiores autoridades em cirurgia oncológica e pioneiro no uso da quimioterapia como meio de combate ao câncer.
Quando o conflito chegou ao fim, no entanto, os médicos americanos regressaram ao país, prontos para retomar seus postos. Os serviços dos estrangeiros não eram mais necessários e todos os médicos seriam dispensados. Contudo, como uma espécie de homenagem, decidiram escolher um dos residentes estrangeiros para que permanecesse trabalhando no hospital em Nova York.
O escolhido foi o brasileiro, que se tornou o primeiro médico do país a se especializar em oncologia. Esse tempo trabalhando e pesquisando no Memorial Hospital foi essencial para que, ao voltar para o país natal, trouxesse na bagagem, além do conhecimento adquirido, novas técnicas de cirurgias feitas no primeiro mundo para um país em desenvolvimento.
Gentil, que encontrou nos Estados Unidos um novo caminho para sua vida profissional e pessoal – ele se casaria com a americana Ellen Bunker –, revolucionou o tratamento do câncer de mama e foi protagonista na História do tratamento oncológico no Brasil e no mundo.
A biografia
Fernando Gentil nasceu em Fortaleza, Ceará, em 1920, numa família de nove irmãos. Seu pai era um dos donos do Banco Frota & Gentil. Aos 16 anos, foi para o Rio de Janeiro
cursar medicina na Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro. Formou-se médico aos 21 anos.
Fernando Gentil sempre gostou de esporte. Na juventude, praticava jiu-jítsu em Fortaleza, onde chegou a treinar com a família Gracie, famosa na modalidade. Durante a faculdade, no Rio de Janeiro, gostava de nadar em Copacabana em dias de mar revolto. Já em São Paulo, gostava de praticar tênis.
Em geral, seguiu uma rotina rigorosa desde a faculdade. Segundo o filho Eduardo,
no livro 'O Sonho de Carmen, Como a Sociedade Ajudou a Transformar a História do
Câncer no Brasil', sua dedicação na vida era quase totalmente para a medicina.
“Os dias mais felizes dele eram os de cirurgia, quando acordava assoviando e às 6 horas já estava na rua. Voltava depois das 9 da noite. Ficava todo esse tempo entre o Hospital A.C. Camargo e seu consultório”.
No documentário Dr. Fernando Gentil – Inovação e Pioneirismo na Cirurgia Oncológica, de João Pavese, outro filho, Fernando, conta que, embora seu pai fosse uma pessoa introspectiva em vários assuntos, se abria muito quando falava de esporte. A ligação com a família era grande por meio dele, principalmente pelo tênis.
Residência no Exterior
A citada residência no início desta reportagem no Memorial Hospital, Estados Unidos,
foi conquistada por Gentil logo após se formar. Foi assistente do oncologista doutor Pack, de quem recebeu o convite para continuar por lá, mesmo depois da volta dos médicos locais.
Ficou no país até 1940. Foi nos Estados Unidos, também, que sua vida pessoal mudou. Conheceu a americana Ellen Mudge Bunker, filha do diplomata americano Ellsworth Bunker. Durante o período em que esteve no Memorial Hospital, foi apresentado ao cirururante brasileiro Antonio Prudente, que visitava o hospital americano e teve referências sobre o jovem residente.
Quando Gentil voltou para o Brasil, Prudente o convidou para encabeçar o projeto que estava desenvolvendo: o primeiro hospital especializado em câncer no país. Era uma ideia audaciosa, numa época em que falar sobre a doença no Brasil ainda era um tabu. O Hospital A.C. Camargo seria fundado em 1953, com Gentil na chefia do departamento de cirurgia pélvica.
O primeiro serviço de clínica cirúrgica esteve sob sua direção desde o início. No hospital, o trabalho na formação dos primeiros médicos com especialização em oncologia do país é inegável.
“Ele teve papel fundamental na formação de muitos cirurgiões oncologistas que estão pelo Brasil afora”, descreve no documentário o também cirurgião oncologista Ademar Lopes, que trabalhou ao lado do médico e o substituiu na direção da cirurgia pélvica no Hospital A.C. Camargo após sua morte.
Técnica revolucionária
Além de trabalhar no hospital, Gentil se dedicava às pesquisas, cuja maior preocupação
era colocar o indivíduo (e não a doença) no centro das discussões. Com isso, na década de 1970, desenvolveu uma técnica mais humana de cirurgia para o câncer de mama, que alterou definitivamente a forma como se lidava então com a doença.
Na cirurgia que passou a fazer em suas pacientes, retirava somente o tumor e a parte do seio que estava imediatamente próxima a ele, preservando a pele, a aréola e o mamilo, e em seguida fazia a reconstrução com prótese de silicone.
Esse procedimento era bem diferente do utilizado naquela época, do método preconizado pelo médico americano William Halsted, difundido em todo o mundo até então. Com o avanço de técnicas de anestesia e de assepsia no século 19, Halsted iniciou um tipo de procedimento em pacientes com câncer de mama que passaria a ser conhecido pelo seu sobrenome.
Ele “desenvolveu a mastectomia radical, que removia o seio, os nós axilares e os músculos do peito para prevenir que o câncer se propagasse caso os membros fossem removidos individualmente”, relatou a doutora Ananya Mandal, especializada em farmacologia clínica, no artigo History of Breast Cancer.
Nova técnica
Naqueles tempos, o procedimento do médico americano era considerado agressivo, especialmente porque era utilizado para qualquer tipo de tumor, independentemente do tamanho e da gravidade. Não à toa, a nova técnica criada por Gentil ficou conhecida como “o método conservador”, porque buscava conservar ao máximo o corpo da mulher.
O médico também apostou em implantes de próteses de silicone para preencher os seios afetados pela cirurgia contra o câncer – o que, ao considerar o olhar de seu próprio tempo, mostra que, para ele, o bem-estar e a autoestima das mulheres que passavam pela operação de câncer de mama eram primordiais, quando comparadas à própria doença.
Foi um dos tratamentos mais revolucionários do câncer de mama, e, por ser tão inovador na época, era também polêmico. Quando começou a ser conhecido, o método de Gentil chegou a ser ironizado por médicos e pesquisadores de outros países.
Em 1975, quando o brasileiro apresentou os primeiros resultados de sua cirurgia em uma reunião entre especialistas no Hospital A.C. Camargo, foi criticado pelos defensores da técnica de Halsted: Umberto Veronesi, de Milão; Jerome Urban, responsável pela área de mama do Memorial Hospital, onde Gentil havia feito residência; e os brasileiros Adair Eiras, do Instituto Nacional de Câncer, e José B.S. Neto, do A.C. Camargo.
Tempos depois, esses mesmos cirurgiões reconheceram que uma revolução acontecia naquele momento com relação ao tratamento do câncer de mama e, passados alguns anos, o doutor Veronesi apresentou ao mundo a quadrantectomia, técnica mais conservadora ainda que a de Fernando Gentil, em que se retira somente um quarto da mama.
O médico ficou mundialmente conhecido a partir de então. As 60 primeiras experiências de Gentil testando o novo tratamento foram publicadas na década de 1980 no Journal of Surgical Oncology e a “cirurgia do Gentil”, como era conhecida a sua técnica no Hospital A.C. Camargo, se popularizou pelo mundo, tornando o procedimento de Halsted obsoleto.
O câncer de mama
Os primeiros registros referentes ao câncer de mama datam da Antiguidade. Há mais de 3500 anos, os egípcios já a descreviam, como comprova um papiro no qual falam de inchaços incuráveis que aumentavam os peitos.
O conhecimento sobre o funcionamento e o interior do corpo humano era mínimo, e qualquer tipo de mal era encarado como uma batalha contra espíritos amaldiçoadores que habitavam o corpo doente.
Em 480 a.C., Hipócrates, que começou a olhar mais para o interior do corpo de seus pacientes do que para as supostas forças ocultas ao redor, entendeu que a função do médico deveria ser equilibrar os humores que o enfermo possuía dentro do corpo – a saber: sangue, fleuma, bílis amarela e bílis negra – e que o câncer era causado por excesso de bílis negra.
Foi ele quem batizou a doença com o nome que conhecemos – para ele, os tumores pareciam ter patas como as de um caranguejo. No início do primeiro milênio, o médico grego de origem romana Claudio Galeno deu o norte do que seria a base da medicina pelos séculos seguintes: controle da dieta e melhoria da higiene.
Com a dissecação de seres humanos proibida em seu tempo, costumava basear seus estudos abrindo e analisando o corpo de macacos (muitas vezes ainda vivos) e experimentando ideias em outros animais.
No século 16, após abrir, vasculhar e estudaruma quantidade significativa de pessoas mortas, o belga Andreas Vesalius, considerado o “pai da anatomia moderna”, conclui sua enciclopédia sobre o corpo humano, em 1543.
Os sete volumes de 'De Humani Corporis Fabrica' (Da Organização do Corpo Humano) se dividiam em ossos, músculos, sistema circulatório, sistema nervoso, abdômen, cérebro, coração e pulmões. Esses avanços fizeram com que no final do século 17 a teoria de que o câncer vinha do excesso de bílis negra começasse a ser questionada.
O alemão François de la Boë Sylvius indicou que a doença poderia ser consequência de um processo químico pelo qual os líquidos linfáticos passavam. O francês Claude-Deshais Gendron, já no século 18, cogitou que o câncer era a consequência de problemas nos nervos e tecidos glandulares.
Pouco antes disso, uma teoria estapafúrdia: como a ocorrência de câncer de mama em freiras era bastante alta, em 1713 o italiano Bernardino Ramazzini sugeriu que a doença seria consequência da falta de sexo. O problema também foi atribuído ao leite que se coalharia no peito, a inflamações de pus, à esterilidade, a transtornos mentais depressivos e até ao estilo de vida sedentário de certas mulheres.
Um dos primeiros médicos a realizar nesse século com sucesso uma mastectomia, removendo os gânglios linfáticos, tecido mamário e alguns músculos da região foi o cirurgião também francês Jean-Louis Petit. Em 1895, o escocês George Beatson notou que, ao remover o ovário de uma de suas pacientes, o tumor no peito encolheu – isso graças às mudanças hormonais provocadas pela ação –, e tal prática passou a ser adotada.
Escolhas difíceis
Aliando a técnica de Halsted à de Beatson, o câncer de mama promoveu uma difícil escolha para as mulheres: conviver com a doença até onde fosse possível ou retirar o tumor e, consequentemente, partes do corpo (um tabu para além da própria doença naquela época). Somente na segunda metade do século 20 que pesquisadores começaram a indicar que o câncer talvez não fosse algo pontual.
O americano Bernard Fisher sugeriu que a doença poderia avançar por metástases e, na década de 1970, propôs cirurgias mais simples seguidas de radioterapia e quimioterapia, eficazes tanto quanto as técnicas de William Halsted, porém, embora ainda agressivas, muito mais cautelosas para as mulheres.
É nesse momento que Fernando Gentil entra com peso na História do tratamento da doença, propondo suas intervenções conservadoras.
Depois de Gentil
No filme 'Uma Chance para Viver', lançado em 2008 e protagonizado por Harry Connick Junior, um médico passa mais de dez anos trabalhando em pesquisas que resultarão em uma nova droga para lidar com o câncer de mama.
A obra é uma dramatização da vida real do doutor Dennis Slamon, americano que revolucionou o tratamento da doença ao criar, no final da década de 1990, o Herceptin, um dos principais medicamentos aliados de doutores e pacientes no combate a esse tipo de tumor ainda nos dias de hoje.
O longa pode ser visto como um grande exemplo dos passos que vêm sendo dados no tratamento do câncer de mama. Se na época de Halsted a técnica poderia levar à perda de membros por causa de tumores minúsculos, hoje a ideia é completamente diferente. Os próprios Bernard Fisher e Fernando Gentil passaram a considerar a doença um problema sistêmico e a se preocupar com o organismo como um todo.
Desde então, a cirurgia é uma das possibilidades, mas, com o avanço da ciência, não mais a única. A radioterapia, por exemplo, é um recurso bastante utilizado, que pode evitar retirar parte do corpo da mulher. “Há a técnica que fazemos hoje de cirurgias preventivas, como a que a Angelina Jolie fez”, contou a doutora Fabiana Baroni Makdissi, médica mastologista e cirurgiã oncologista.
Ou seja, tão importante quanto – ou até mais importante que – curar a doença é fazer com que o bem-estar da paciente seja mantido, assim como se preocupara o doutor Gentil durante sua carreira.
A grande mudança veio mesmo quando a medicina passou a tratar o câncer de mama de forma multidisciplinar, levando em conta a autoestima das mulheres, tratando-as com respeito, prezando pela qualidade de vida, já propondo reparações das áreas afetadas, atuando junto com psicólogos e tratando cada caso de acordo com sua particularidade. Há situações em que a utilizaçã de drogas, por exemplo, é mais importante do que o tratamento cirúrgico, porque a resposta a ela é muito boa”, explicou a oncologista.
É quando Fabiana pensa em como será o futuro que a conexão com o filme 'Uma Chance para Viver' fica evidente.
“Teremos mais trabalhos sobre a biologia do tumor e quais medicamentos podem combatê-lo sem que o paciente passe por cirurgias agressivas. É preciso encontrar a genética do tumor, saber como ele nasceu, e também apostar em novas drogas como o Herceptin, que fez com que muita gente deixasse de morrer. A melhoria dos tratamentos efetivamente dá mais anos de vida ao paciente, mesmo aos que têm metástase. Hoje há a possibilidade de o paciente viver em comunhão com um câncer metastático, inclusive. E os tratamentos mais efetivos não necessariamente são os maiores. Em alguns casos, menos é mais.”
Com essa evolução e esses tratamentos, atualmente as mais de 2,3 milhões de mulheres que costumam ser diagnosticadas com a doença no mundo a cada ano já podem vislumbrar um tratamento e um futuro muito mais afáveis para si, e o doutor Fernando Gentil tem papel primordial na História da oncologia mundial.
O médico de personalidade forte, que amava música clássica – que ouvia sempre durante as cirurgias – e operava sem cobrar nada de quem não tinha dinheiro para lhe pagar, modificou sobremaneira o tratamento do câncer de mama. E entregou às mulheres vítimas da doença uma garantia de esperança e uma vida melhor.
Fernando Gentil morreu em 1980, aos 69 anos, de ataque cardíaco. Ainda atuava profissionalmente. Em sua clínica, havia mais de 30 mil fichas de clientes, um marco para qualquer profissional da área da medicina. E um marco para cada mulher que passou
pelos seus cuidados.