Griôs, os guardiões da ancestralidade
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Aventuras Na História
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O conceito de coletividade é fundamental para o entendimento do pensamento antirracista, que, em tese, é sempre contra o individualismo, a meritocracia e a perpetuação de estereótipos raciais.
Todo o cerne dos movimentos de afirmação da cultura negra é baseado na promoção da equidade, do coletivo, através da diminuição das desigualdades sociais que lançam grande parte da população preta num abismo econômico.
Segundo Nei Lopes, referência para toda a sociedade brasileira, não só para os negros, “o ancestral assegura tanto a estabilidade e a solidariedade do grupo no tempo como sua coesão no espaço”. O problema é que assim como há a ancestralidade africana diaspórica, também há a ancestralidade pautada em racismo estrutural.
Discursividade excludente
Séculos/milênios de um modelo opressor, calcado em uma discursividade excludente, que foi se aperfeiçoando, se tornando cada vez mais efetivo e menos visível. Dando uma falsa ideia de que o racismo vem diminuindo, quando em verdade, práticas racistas apenas estão sendo mais divulgadas e, em alguns casos, criminalizadas.
Parece-me que a ideia de que negros e indígenas são inferiores, infelizmente, é soberana, mas é um pensamento não-dito, porque a repercussão de atitudes racistas é malvista e penalizada, judicialmente ou por cancelamento público nas redes sociais. Ou seja, o medo de ser visto como racista é maior do que a vontade de deixar de sê-lo.
O griô
A representatividade pode ajudar a conscientizar sobre a importância do antirracismo e da busca pela igualdade de direitos. Figuras de grande repercussão podem “funcionar” como griôs para promover o debate e buscar a mudança.
O griô é considerado o mestre da palavra na África Ocidental, além de contador de histórias, genealogista, músico, conselheiro e conciliador, tem a nobre função de manter viva a memória de determinado povo africano através da oralidade.
Nasce-se griô, não há uma escola, há sim experiência e/ou legado passado dos mais velhos para os mais novos, através de histórias, ditados e metáforas que alimentam as consciências e os espíritos de quem os procuram.
Evidentemente que as experiências têm pesos diferentes e afetam individualmente, inclusive os griôs, ensinando-os, passo a passo, num aprendizado constante que se consolida, também, quando contam suas (des)venturas.
Narrar significa tornar vivo, pertencente, resiliente, exemplar, um passado que se transfigura em presente e, logo em seguida, em futuro. O griô, através de suas histórias, é um alicerce para a evolução da comunidade/sociedade. Precisamos, sempre, de novos griôs, de pessoas que nos façam pensar.
O reconhecimento de uma história ancestral que tenha representatividade para nos ajudar a entender o presente não precisa ser, apenas, sobre acontecimentos ocorridos séculos atrás.
Ancestralidade forja a personalidade de quem a entende como aprendizado constante e funciona como figura de representatividade para os jovens. Quem está “falando” tem de ter isto em mente, deve alcançar os jovens, deve ser entendido por eles, seja com histórias da semana passada ou da época em que a tortura de negros era um espetáculo, para o grande público, legitimado por leis.
Luta antirracista
O controverso, para alguns, termo lugar de fala implica num entendimento da(s) perspectiva(s) de quem tem algo para dizer, e que nem sempre consegue, em face da(s) perspectiva(s) de quem está apto a ouvir e respeitar tais palavras, e que nem sempre consegue.
Resumindo, uma pessoa branca pode argumentar contra o racismo, mas só a partir de uma perspectiva de quem não sofre o preconceito na pele. Não é o entendimento imbecilizante de que “como sou branco não posso falar nada”.
Sempre se deve falar contra o racismo e incentivar que todos falem — sabendo que o, maior, sofrimento em relação à segregação é negro —, sem ser condescendente, na concepção pejorativa do vocábulo. Daí a importância da representatividade, para a consolidação de uma mudança de pensamento que resulte em igualdade, e da ancestralidade, que aponta novos caminhos baseados nas trajetórias antigas.
A pessoa que fala tem de ter história para contar, independentemente de ser branca, preta ou indígena. Novos griôs são sempre necessários. A pergunta que fica é simples: estamos dispostos a ouvir o que algum não-branco, com história para contar, tem a dizer, sem interrompê-lo?
*Du Prazeres é professor da Universidade Estadual de Londrina, pós-doutor em Letras pela PUC-RIO, revisor de grandes editoras. Agora, ele estreia como escritor com o livro 'Antirracismo em contos leves'. Carioca do Estácio, cria da favela, filho e neto de empregadas domésticas, estudante de escolas públicas e homem negro, defende a educação como única forma de combater o preconceito e a ignorância.
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